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  • Writer's pictureGenivan Júnior

Os níveis da alfabetização

Estudiosos defendem a importância de refletir sobre os diferentes estágios das pessoas no uso da língua escrita


Para Colello, a divisão entre analfabetos e alfabetizados, hoje em dia, não existe mais, “porque o que há são pessoas que usam a língua escrita em diferentes níveis e com diferentes possibilidades”. | Foto: Freepik

Apesar do analfabetismo absoluto, aquele em que o indivíduo recebeu pouca ou nenhuma instrução para ler e escrever, ser o responsável pelo principal foco de problematização das reportagens do Palavras Cruzadas, existem outros tipos de analfabetismo. Dentre eles, um que é pouco conhecido e explorado pela academia é o analfabetismo de resistência, que inclusive já foi pauta no blog.


A professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE/USP) Silvia Colello explica que “quando ensinamos alguém a ler e escrever, intrinsecamente, a gente está propondo que esta pessoa viva no mundo da língua e isso pode ser extremamente agressivo para muitas pessoas que não têm esta esfera da língua escrita incorporada no seu dia a dia”. Em decorrência disso, a pesquisadora explica que, principalmente nas comunidades com vulnerabilidades socioeconômicas, aparentemente a prática letrada contraria as origens do modo de vida social e, então, cria-se uma resistência muito grande, que nem sempre é percebida pelos professores e, que, muitas vezes, é atribuída a uma incapacidade do aluno.


Colello comenta que na década de 1990, em função de mudanças políticas, sociais, econômicas, tecnológicas e de abertura política no Brasil, foi ficando claro que não bastava somente saber escrever o próprio nome e poucas palavras. “Mais do que aprender a ler e escrever no sentido escrito, era preciso formar esse sujeito que transita pelas múltiplas linguagens”, complementa. Então, surge o termo letramento, com a intenção de dar conotação ao sujeito que aprende não apenas a ler e escrever, mas que se torna um usuário da escrita. “É o sujeito se embrenhando no mundo das muitas linguagens típicas do nosso tempo”, conta.


Colello explica que a pesquisadora Magda Soares, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), compreende a alfabetização como a ação de ensinar ou aprender a ler e escrever, ou seja, adquirir e compreender o sistema de escrita. Enquanto o letramento, por sua vez, é estabelecido como a condição de quem, além de ler e escrever, cultiva e exerce as práticas sociais que usam a língua escrita. É o sujeito que responde aos apelos da sociedade letrada. De acordo com Colello, a partir do uso dos termos fica claro para sociedade e educadores, que “aprender as letras, sílabas e ortografia não era o suficiente, pois é preciso atrelar este conhecimento a competência de usar este saber em diferentes práticas e para variados fins”.


Para Colello, a divisão entre analfabetos e alfabetizados, hoje em dia, não existe mais, “porque o que há são pessoas que usam a língua escrita em diferentes níveis e com diferentes possibilidades”, afirma a docente. Um dos tipos de analfabetismo mais conhecidos é o analfabetismo funcional, que, segundo Colello, “é o caso de pessoas que passaram pela escola, supostamente aprenderam a ler e escrever, mas são incapazes de fazer uso disso”.


No Brasil, a última pesquisa que mede o Indicador de Analfabetismo Funcional no país (Inaf Brasil), realizada em 2018, constatou que 29% dos brasileiros eram considerados analfabetos funcionais, isto é, eram capazes apenas de lidar com textos curtos, como bilhetes e anúncios. O número já foi de 39% em 2001, quando a ONG Ação Educativa e o Instituto Paulo Montenegro começaram a realizar esta pesquisa em 2001. Para esse levantamento, o IBOPE Inteligência ouviu 2.002 pessoas entre 15 e 64 anos de idade, residentes em zonas urbanas e rurais de todas as regiões do país.


A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) define o "analfabeto funcional" como toda pessoa que sabe escrever seu próprio nome, como ler e escrever frases simples, realizar cálculos básicos, contudo, é incapaz de usar a leitura e a escrita em atividades rotineiras do dia a dia, impossibilitando seu desenvolvimento pessoal, profissional e acesso ao mercado globalizado de trabalho. Pessoas que ficam à mercê das dificuldades de aprendizagem do conhecimento tecnológico da modernidade, por não conseguir interpretar o sentido das palavras, expressar, por escrito, suas ideias, nem realizar operações matemáticas mais elaboradas.


Ainda, segundo a pesquisa Inaf Brasil, os níveis de alfabetização estão classificados em cinco faixas: analfabeto e rudimentar, que formam o grupo de analfabetos funcional e representavam 8% e 22% da população, respectivamente; elementar (34%); intermediário (25%); e proficiente (12%), que estão na classificação de alfabetizados. “Divisão que se dá justamente por falarmos de diferentes realidades e situações, que se relaciona com o contexto e situação social de cada indivíduo”, conta a docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia (FACED/UFU), Fernanda Duarte.


“Mais do que saber se uma pessoa é alfabetizada ou não, esta classificação possibilita entender quais foram as vivências e experiências que a pessoa teve em sua trajetória e como isso se materializou em sua relação com a leitura e a escrita”, explica Duarte.


Confira abaixo, a escala de proficiência que se relaciona com cada um dos níveis de alfabetização:


Analfabeto

  • Corresponde à condição dos que não conseguem realizar tarefas simples que envolvem a leitura de palavras e frases, ainda que uma parcela consiga ler números familiares (de telefone, preços, etc.).

Rudimentar

  • Localiza uma ou mais informações explícitas, expressas de forma literal, em textos muito simples (calendários, tabelas simples, cartazes informativos) compostos de sentenças ou palavras que exploram situações familiares do cotidiano doméstico.

  • Compara, lê e escreve números familiares (horários, preços, cédulas/moedas, telefone) identificando o maior/menor valor.

  • Resolve problemas simples do cotidiano envolvendo operações matemáticas elementares (com ou sem uso da calculadora) ou estabelecendo relações entre grandezas e unidades de medida.

  • Reconhece sinais de pontuação (vírgula, exclamação, interrogação etc.) pelo nome ou função.

Elementar

  • Seleciona uma ou mais unidades de informação, observando certas condições, em textos diversos de extensão média realizando pequenas inferências.

  • Resolve problemas envolvendo operações básicas com números da ordem do milhar, que exigem certo grau de planejamento e controle (total de uma compra, troco, valor de prestações sem juros).

  • Compara e relaciona informações numéricas ou textuais expressas em gráficos ou tabelas simples, envolvendo situações de contexto cotidiano doméstico ou social.

  • Reconhece significado de representação gráfica de direção e/ou sentido de uma grandeza (valores negativos, valores anteriores ou abaixo daquele tomado como referência).

Intermediário

  • Localiza informação expressa de forma literal em textos diversos (jornalístico e/ou científico) realizando pequenas inferências.

  • Resolve problemas envolvendo operações matemáticas mais complexas (cálculo de porcentagens e proporções) da ordem dos milhões, que exigem critérios de seleção de informações, elaboração e controle em situações diversas (valor total de compras, cálculos de juros simples, medidas de área e escalas);

  • Interpreta e elabora síntese de textos diversos (narrativos, jornalísticos, científicos), relacionando regras com casos particulares com o reconhecimento de evidências e argumentos e confrontando a moral da história com sua própria opinião ou senso comum.

  • Reconhece o efeito de sentido ou estético de escolhas lexicais ou sintáticas, de figuras de linguagem ou sinais de pontuação.

Proficiente

  • Elabora textos de maior complexidade (mensagem, descrição, exposição ou argumentação) com base em elementos de um contexto dado e opina sobre o posicionamento ou estilo do autor do texto.

  • Interpreta tabelas e gráficos envolvendo mais de duas variáveis, compreendendo elementos que caracterizam certos modos de representação de informação quantitativa (escolha do intervalo, escala, sistema de medidas ou padrões de comparação) reconhecendo efeitos de sentido (ênfases, distorções, tendências, projeções).

  • Resolve situações-problema relativos a tarefas de contextos diversos, que envolvem diversas etapas de planejamento, controle e elaboração, que exigem retomada de resultados parciais e o uso de inferências.


Desta forma, a estudiosa defende a importância de se refletir e conhecer os diferentes tipos de analfabetismo existentes em nossa sociedade, que, muitas vezes, devido a esta infinidade de termos, gera confusão a quem busca conhecer mais sobre o assunto e aos próprios pesquisadores da área. “Não podemos generalizar ao falar sobre o analfabetismo, como se todos estivessem no mesmo nível. A ideia é que a gente possa identificar, mapear dentro do nosso país a situação da alfabetização. Então, é preciso entender que não basta apenas discutir se aquele é alfabetizado ou não, mas é interessante saber que existem diferentes níveis nesse processo de apropriação da leitura e da escrita”, defende.


A pesquisadora Fernanda Duarte também explica que à medida que o sujeito não se apropria da leitura, da escrita, isso o compromete em outros aspectos, como é o caso do analfabetismo digital, aquele em que o indivíduo apresenta dificuldades em lidar com as questões do mundo digital. “Neste processo em que o uso das tecnologias cresce cada vez mais, a necessidade de uma leitura crítica é importante para que o usuário das redes possam saber contextualizar, questionar e criticar o que está sendo colocado em pauta”, reflete.


A pesquisa Inaf de 2018 revelou que os analfabetos funcionais são grandes consumidores das redes sociais, apesar das dificuldades de acesso. Dentre eles, 86% usavam WhatsApp, 72% eram usuários do Facebook e 31% do Instagram. Diante deste cenário, Duarte julga que estes sujeitos estão cada vez mais suscetíveis à desinformação. “Podemos ver, por exemplo, a quantidade de notícias falsas espalhadas nos últimos anos e o quanto isso envolve a falta de formação científica, de entender, de interpretar, de questionar”.


Por esta questão, a docente alerta sobre a importância da alfabetização para se questionar e validar o que aparece: “A questão do analfabetismo é muito séria, ainda mais na sociedade em que vivemos, em que há essa enorme quantidade de informações falsas circulando. Então, devido a isto e a influência que as redes sociais exercem na realidade que estamos, tanto política quanto social, é primordial a defesa da educação”.

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